A FERIDA DO ABANDONO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS NO VIR A SER DE FRANCISCO

O presente trabalho apresentará um estudo de caso sobre abandono na vida infantil. O trabalho será apresentado com vinhetas da vida pregressa e atual do paciente articulando com as teorias dos autores Freud, Winnicott, Klein e outros. Os nomes apresentados são fictícios. A escrita desse trabalho possibilitou formas de pensar os reflexos do abandono na infância e suas consequências no decorrer da vida. E quando a família que adota não tem estrutura para conter os conflitos e a criança permanece órfã de pais. O objetivo deste estudo de caso foi analisar e compreender as consequências do sentimento do abandono e o quanto pode vir a refletir na vida adulta do paciente analisado.

Motivo pela busca do tratamento: Conflitos com os pais adotivos

Francisco foi encaminhado para tratamento psicológico pela psiquiatra em setembro de 2020. O meu primeiro contato foi com os seus pais adotivos.

Na ocasião o casal relembrou as dificuldades de engravidar. Foram mais de 10 anos de tratamento, expectativas e frustrações ao longo dos anos e, o sonho de ser mãe de barriga tornava-se distante a cada ano que passava.

Francisco foi adotado aos 11 anos de idade. Com olhar triste, a mãe revelou que com o passar do tempo perdeu a confiança em Francisco.

Ele só briga em casa, tudo é no grito, não nos respeita, fuma maconha, não tem hora para dormir, anda com uns garotos da pesada, não adianta a gente falar, entra num ouvido e sai no outro. Quando ele tinha uns 13 anos ele fez terapia por um ano por causa da rebeldia e depois não quis mais, tu vai ver só quando tu atender ele.

O discurso dessa mãe na sessão despertou-me a curiosidade, quem é esse adolescente sobre o qual ela não tem poder, e por isso precisam retornar novamente à terapia.

Os sentimentos capturados em sessão são descritos como contratransferência para a psicanálise. Klein (1991) considera a contratransferência como núcleos inconsistentes do analista, tidos como insatisfatoriamente analisados. Já Winnicott, que utilizou o termo contratransferência no artigo “O ódio na contratransferência” (1947/2000), destacou como efeitos recíprocos que o par analítico provoca um no outro. Zimerman (2017) cita Bion (1963), que se utilizou do termo quando realizava os trabalhos em grupos na década de 40, e ressaltou uma bela observação já dita por Klein, que a identificação projetiva seria uma descarga de sentimentos intoleráveis, uma forma de comunicação primitiva, não-verbal, pelos efeitos contratransferências.

João e Maria se conheceram ainda jovens, tiveram quatro filhos. Pedro, Carlos, Francisco e Cristal. Com o passar dos anos João e Maria passaram a discutir com frequência na frente dos filhos ainda crianças. As brigas eram constantes, assim como os gritos e as agressões físicas e verbais. Maria apresentava semblante deprimido, olhar triste, não tinha vontade de comer e de se arrumar, às vezes, fazia uso de álcool e drogas com João. As traições eram comuns entre o casal, e as crianças assistiam a tudo e a todos. Winnicott (1975) entende que a família tem papel fundamental no desenvolvimento da criança.

Francisco suspeitava que a mãe tinha algum tipo de problema como depressão. Com as dificuldades da época, Maria passou a não se cuidar e a falar sozinha, não conseguindo mais cuidar dos filhos, em decorrência dos maus tratos, as crianças foram direcionadas para um abrigo. Francisco na época tinha seis anos de idade. Frente aos relatos do paciente podemos intuir aqui a mãe descrita por Melanie Klein, uma mãe em pedaços, ego fragmentado, podemos imaginar que essa mãe foi um bebê que não teve uma integração, uma criança que não aprendeu a fantasiar o objeto sem destruir, sem usar a pulsão de morte. Esse bebê na fase adulta, não conseguiu lidar com seus conflitos, então projetou o instinto de morte em destrutividade nos filhos e em si mesma. Parece ter sido esse o ambiente no qual o bebê Francisco cresceu.

A criança necessita de um ambiente que ofereça segurança para ser capaz de cumprir o desenvolvimento pessoal de acordo com suas tendências herdadas. “O resultado é uma continuidade da existência, que se transforma num senso de existir, num senso de self e finalmente resultando em autonomia” (Winnicott, 1999, p. 10). O bebê passa pela integração, se torna possível o eu sou que dará sentindo ao eu faço. A falta desse ambiente seguro, desprovido dos cuidados primários mais básicos veio a desencadear uma vida de conflitos internos e externos que veremos a seguir.

E foi assim que tudo começou (…)Convidei-o para entrar na sala de atendimento, sentou-se ao sofá, de cabeça baixa e outro pouco levantando-a na minha direção, havia um pouco de timidez tanto na fala quanto no comportamento.

No primeiro dia do atendimento, Francisco falou um pouco de tudo, da família biológica, da experiência do Lar adotivo, do período de terapia, fez um apanhado geral. Fui escutando-o atentamente. Percebi que na sua fala carregava um pouco de tristeza, raiva e insegurança. Numa situação terapêutica, baseada sobre um campo emocional formara-se uma combinação das emoções de ambos os pares, e com essa combinação de emoções o terapeuta, através da identificação projetiva consegue se colocar na situação com seu funcionamento mental e empatia e auxiliar o paciente a submergir em seu inconsciente, tendo como possibilidade revisitar e elaborar o seu passado, os seus traumas e os seus fantasmas (Ferro, 1995).

Era um dia nublado, quarta-feira, Francisco se fazia presente. Aguardava na recepção, como de costume, ao celular. Convidei o para entrar, sentou-se no sofá, me olhou com sorriso e perguntou o que deveria falar, respondi o que tu quiser. Então começou (…) quando lembro do meu pai, tenho muita raiva dele, ele batia na minha mãe, gritava com nós, eu ficava acocado, tapava os ouvidos para não ouvir eles brigarem, era sempre assim quando ele bebia, a minha mãe era fraca. Não conseguia se defender dele, eu tinha uns cinco anos e a minha irmã uns dois anos. Pude perceber no seu olhar, na expressão do rosto que a lembrança era dolorosa, por um instante me transportei junto à cena e o vi pequenino e frágil.

Para Donald W. Winnicott (2000) os cuidados maternos são fundamentais no início do desenvolvimento, a mãe vai integrando a criança e o ego da mãe supre o ego do bebê, é essencial que eles despertam na criança a tendência ao prazer de viver. Podemos pensar aqui, o termo “preocupação materna primária” na qual a mãe tem a capacidade de desligar ou de renunciar certos interesses pessoais a fim de direcioná-los à criança. Assim como o conceito de holding, o modo que mundo é apresentado à criança, a forma que a mãe protege a criança das experiências angustiantes no processo de integração, de personalização e primeiras relações objetais. É a partir desses processos que a criança passa a ter capacidade para estar só. Podemos pensar aqui o mundo que foi apresentado a Francisco, na sessão minha mãe só gritava, não me lembro de ela nos pegar no colo ou fazer algum carinho.

Francisco, uma mente cheia de fantasias, medos e incertezas. Para Klein citada por Greenberg e Mitchell (1994), o estado do mundo objetal interno é a base subjacente para o comportamento, humores e senso de self. Eu acho que não sou bom em nada. Francisco tem dificuldades para lidar com as frustrações e fazer reparações. Em alguns momentos na sessão, o vejo com ansiedade paranoide: o medo da destruição do self vindo de fora e, e na mesma sessão a ansiedade depressiva: fantasia dos medos ao destino de outros. Tive medo de os meus pais adotivos morrerem por assalto. Klein entende que essa preocupação pelo objeto externo pode estar junto à expressão de amor e gratidão.

Passo a seguir o modelo de Klein citada por Greenberg e Mitchell (1994) de relações objetais que está relacionado com o destino do objeto e tentativas de restaurá-lo, uma vez que o ego do Francisco duvida da sua capacidade de alcançar essa reparação, então passei a exercer a função de uma mãe suficientemente boa e a introjeção de objetos bons.

Ensinando a Francisco formas de amar…

Um self que não foi herdeiro do holding propiciou a Francisco um self cindido que o deixou na dúvida do sentimento de existir. Passei a transformar a ausência da falta relativa para ser uma mãe suficientemente boa, que utiliza os objetos internos para fantasiar e alucinar a realização das suas necessidades, permitindo a integração em busca da sua identidade e a independência.

Francisco recordava as lembranças dolorosas do passado (…). Seu olhar carregava dor e sentimento de raiva. Notei que as veias do pescoço e dos braços ficaram fortes e salientes. Em seguida manifestou: eu tenho uma raiva dentro de mim, diante dessa fala, fui autorizando Francisco sentir os sentimentos e trabalhando a sua dor e, a partir desse momento, os ombros caíram, a musculatura relaxou, e a tristeza no olhar se fez presente, logo a raiva cedeu espaço para a manifestação do trauma e da fragilidade. É nos detalhes, nos fragmentos que surgem os segredos dos traumas (Shengold, 1999).

Para Winnicott (1971/2012), a destrutividade está associada ao ódio em decorrência da frustração pelo objeto. Podemos pensar aqui que o objeto do paciente pode ser sua mãe biológica e seu pai. Freud já havia escrito na metapsicologia “pulsões e destino das pulsões” a luta entre os instintos de vida e os instintos de destruição, estado de imaturidade. Imaturidade que ficou em evidência ao longo do tratamento. Muitas vezes transitando na pulsão de vida e na pulsão de morte.

Durante a sessão, Francisco relatou que brigou no jogo de futebol e no trabalho em dias diferentes, mas tudo no mesmo mês. Enquanto eu não vi o sangue eu não parei de bater, depois eu fiquei preocupado com eles, mas só que na hora que tô batendo eu não consigo parar. Nesse momento me dou conta que a raiva que ele sentia pelo pai biológico era deslocada para outros. Os atos errados geravam sentimentos ruins e o sentimento de culpa o consumia. O passado ainda se fazia presente vivamente dentro dele, percebi que Francisco precisava falar da morte do pai, matar de forma simbólica para assim não deixar contido no aparelho psíquico como forma de doença mental e, a partir disso aprender formas de amar e de expressar os sentimentos.

Podemos pensar aqui a parte psicótica da personalidade que é cindir e projetar alguns fragmentos nos dias de hoje, e por isso, Francisco tem dificuldades de acessar o pensamento (Bion, 1994). De acordo com Freud (1914/2010) a psicoterapia protege o paciente dos prejuízos e da execução dos impulsos, uma vez que o instrumento principal da compulsão a repetição é a destruição através da morte, separado da pulsão de vida.

Na sessão, tive um ataque de fúria, eu me acho um monstro Francisco sentiu o dano que causou nos que o amam. Acolhi sua queixa e logo passei a dizer que existem outras formas de expressar e de falar seus sentimentos. Em seguida completei que precisamos pensar uma forma de transformar a raiva em palavras para evitar novas crises e conflitos.

A palavra monstro me remeteu o conceito de Klein (1996), ódio e a destruitividade, a falta dos objetos bons internos, o vazio, a desintegração de um ego fragilizado. Francisco é dominado pelos instintos destrutivos e uma mente primitiva. Depois de alguns meses de terapia, Francisco passou a fazer reparações dos seus ataques, pedindo perdão aos pais adotivos quando brigava. Klein (1996) considera a capacidade de identificação com outra pessoa um elemento fundamental, uma condição básica para sentimentos de amor fortes e verdadeiros. Com essa atitude, Francisco recria na fantasia o amor e a bondade que tanto deseja dos pais para com ele. A partir disso, passa a existir a possibilidade de lidar com as frustrações e sofrimentos do passado e futuro.

“O assassinato da alma envolve trauma pelo mundo externo à mente, que é tão esmagador que o aparelho mental é inundado com sentimentos” (Shengold, 1999, p. 11). Francisco não conseguia chamar por socorro, ambos os pais violavam a sua integridade, a sua alma. A criança nada sabe o que está acontecendo. Quando a compulsão e a repetição dos maus tratos entram em evidência, entra em ação sua fala eu briguei com elas, gritei, elas querem mandar em mim, na sessão Francisco é impulsionado por objetos bons internos a desfazer a ilusão que tudo é com destrutividade.”

Shengold (1999) cita Ferenczi quando falou de duas imagens a “identificação de ansiedade de libertação” e “introjeção do agressor” (p.163), a mãe de Francisco representa o papel parental sádico ativo quando pensa em transformá-lo em um objeto bom, quando na verdade ela repete o papel do agressor. Eu só quero ser uma pessoal normal e porque eles também não podem ser normais comigo? Francisco não é  objeto bom sonhado pelos seus pais.

Em sessão, passamos a identificar e compreender tal destrutividade dessa mãe adotiva. Aos poucos Francisco vai acessando seus sentimentos e aprendendo a contê-los. Já sua mãe biológica era uma vítima fragmentada. Deparo-me na sessão sendo uma terceira mãe, auxiliando-o a fazer reparações, sendo uma mãe menos sádica dentro das suas relações.

Ego fragilizado começava a se manifestar e com isso o abandono do último ano do ensino médio. Eu não entreguei os trabalhos e faltei muito, a professora disse que eu vou reprovar o ano. Então tive uma ideia e sugeri, vamos ligar para escola e ver o que tu precisa fazer? Francisco concordou e não perdemos tempo, ligou e tirou suas dúvidas. Ele estudou e passou no provão. Mandou mensagem agradecendo, eu não acredito que eu passei, tem dedo teu nisso, respondi que foi mérito e conquista dele.

Para Outeiral (1998), cabe a mãe corrigir a falha ambiental afim de evitar desordem dos sentimentos da criança. É a partir da integração e do holding da mãe, que a criança vai ao encontro da psicossoma, vai sentindo-se pertencente ao corpo e sentindo-se a personalização e, o corpo torna-se o self em potencial a partir da força dada ao fraco ego.

Passados dois meses, Francisco não sabia o que fazer da vida. Passamos a investigar quais eram seus sonhos, o que ele gostava de fazer, viajamos em pensamento por um tempo, percebia que a insegurança pairava no setting, então ele arriscou engenharia elétrica. Pesquisamos a grade curricular do curso na Universidade, é bem isso que eu gosto, é isso ai mesmo ligamos na mesma hora para saber sobre o vestibular e valores. Perceber o seu próprio self é se perceber, se dar conta que existe, que está vivo, é poder interagir consigo mesmo e com os objetos, dessa forma ser feliz e descansar (Winnicott ,1975).

Francisco foi aceito na universidade. Iniciou a carreira de graduando em 2022/01. Relatou em sessão nunca fui participativo nas aulas, agora a professora pergunta se alguém quer ler eu sou o primeiro, sento bem na frente, até nota boa eu tô tirando. Em alguns momentos não acreditava que as notas eram verdadeiras, ele achava que o professor estava facilitando ganhar notas altas.

Decorridas algumas sessões, Francisco passou a ficar mais seguro, com mais leveza, trazia relatos dos acontecimentos antigos e atuais e com isso, as lágrimas desciam sem que ele quisesse segurá-las ou escondê-las.

Francisco demonstrava evolução no quadro de tratamento e dentre elas seu estado emocional, passou a aumentar a sua capacidade de expressar e manifestar as emoções, essas mudanças eram observadas quando permite que as lágrimas desçam, sem serem contidas. A ambivalência de amor e ódio da mãe e do pai internalizado passou a ceder espaço para novos sentimentos e passos importantes no desenvolvimento do ego para desenvolver defesas mais adequadas contra os conflitos internos e externos (Klein, 1991).

Francisco relatou que foi à praia com os pais. Eu vi uma família caminhando na praia, o pai carregava a criança nas costas e a mãe do lado, eu fiquei olhando e pensei que sorte desse garotinho, ele vai ter boas lembranças, eu já não posso dizer o mesmo, fiquei com inveja dele. Se eu tiver um filho quero ser um bom pai, não quero ser como o meu, quero ser um bom marido. Passei parte da minha infância no orfanato esperando minha mãe vir me buscar, mas nunca foi se quer nos visitar. A cena da praia, os pais caminhando com a criança. Francisco chorou quando relembrou a cena vista na praia. Ele desejou ter aquele momento, mas lhe fora roubado. Através do outro, Francisco conseguiu simbolizar, achou lindo o momento em família, ficou com inveja, mas não destruiu dentro de si a cena, fez a integração da falta que teve na infância, queria sair da compulsão a repetição, fazer diferente dos seus pais. A capacidade de pensar e a criatividade demonstravam um avanço na sua caminhada. A esperança se fazia presente. Nesse momento podemos pensar que Francisco se encontrava na posição depressiva, termo usado por Klein, (1991) ao se referir à integração dos objetos bons e ruins.

Francisco vem demonstrando evolução no tratamento. Contou minha mãe vem brigando por qualquer coisa, ela acha coisa para brigar, até nome feio ela tá falando, eu não sei o que aconteceu com ela, às vezes vou para o quarto pra não ficar batendo boca com ela, meu pai não fala nada, fica só olhado. Para Graña (1994) os adolescentes apresentam problemas, mas considera que os problemas têm implicações mais amplas, de âmbito familiar. A família doente é aquela que reage doentiamente e acaba contaminando a todos reativamente. A mãe passou apresentar comportamento regressivo após a evolução do paciente. Passei acolher a frustração dessa mãe, trabalhei a esperança e a capacidade negativa. Segundo Bion (1994), a consciência que não consegue suportar a carga nela depositada não tem a capacidade de tolerar a frustação, ficando como um objeto que rejeita, que não compreende, ficando com uma consciência prematura e frágil não permite a psique a desenvolver pensamentos a fim de diminuir ou evitar frustrações.

Francisco queria que a mãe o entendesse, que fosse mais carinhosa. O passado se repetia no presente, o abandono afetivo. Ele tinha uma casa para morar, mas sem filiação. Relatava em sessão, eu quero o melhor pra ele, que ele estude pra ser alguém na vida, mas o melhor para ele naquele momento era o afeto, o olhar, suprir a falta dos sentimentos mais básicos. Em sessão, passei a sentir o que Francisco sentia, a frieza, o vazio, o desamparo. Repete-se a violência que sofrera na infância. Então, a partir disso, passei a considerar a relação mãe e filho empobrecedora. Francisco quer apenas ser normal, ter paz, ter uma família que entende e aceita ele do jeito que ele é.

Foi emprestando o meu aparelho psíquico, que Francisco foi se permitindo sonhar, foi se projetando para um futuro um pouco distante, mas não era problema naquele momento, pois a vontade de sonhar era maior e com isso se apresentava com um olhar brilhante. Quero continuar estudando engenharia elétrica, ter uma clínica pra construir aparelhos e ajudar as pessoas deficientes. Tenho vontade de morar na cidade de Gramado acho aquela cidade bonita. Deparo-me embarcando na sua viagem, expresso um sorriso e acrescento: que sonho bonito. Dou-me conta que chegou vazio e aos pouquinhos foi se preenchendo. Francisco passou a ter a capacidade para pensar a sua vida e a sonhar.

O setting deve ser visto como um lugar seguro para o paciente que diante de conflitos vivenciados em sua vida, buscam na psicoterapia um lugar de confiança para reeditar suas angústias primitivas. É nesse espaço onde se produzem as transformações e onde se possibilita ao paciente experimentar o ser (Graña, 1994).

Como mencionado anteriormente, a cada encontro era sempre uma surpresa, nesse não era diferente. Eu quero sair de casa, não dá mais, minha mãe tá brigando por tudo, ela quer me vestir de forma “engomadinho” ela não me respeita. Porque ela não me aceita do jeito que eu sou, ela quer me transformar (…).

Os elementos beta eram evacuados da relação mãe e filho, e a identificação projetiva se fazia presente no setting, eu consiga capturar na minha mente o que o Francisco sentia. A dor do abandono. A idealização de um objeto idealizado na mente de uma mãe. Um filho não visto.

Francisco passou a faltar às sessões abandonando o tratamento.

Passados alguns dias mandei mensagem para Francisco. Quando ele quisesse, poderia mandar notícias. Não demorou muito e logo respondeu a mensagem:

Bom dia

Não estou mais em casa

Estou trabalhando telemarketing

Obrigado por todas consultas

Assim que possível retorno

É bom ter alguém para conversar

Te vejo logo

Essa foi a nossa última conversa, via WhatsApp. Na certeza que ele tomou a decisão que lhe fazia bem naquele momento. Foram três anos e sete meses de terapia, Francisco conseguiu introjetar objetos bons e fazer reparações internas possibilitando um novo recomeço na sua vida rumo à independência, em busca de dias melhores.

Considerações Finais

Francisco tinha o anseio de compreender a si próprio e o sentimento de solidão que o consumia. Passo a passo foi sendo construído um ego já mais integrado. A capacidade para pensar, os seus pensamentos passaram a ser acessados, e com isso, os instintos de pulsão de morte passaram a ser modificados por pulsão de vida e de reparação. E não demorou muito a sua ânsia pela independência e a busca de um ambiente mais saudável se fez possível. “Uma internalização bem sucedida do objeto bom é a raiz de uma identificação com ele, o que fortalece o sentimento de confiança e daquilo que é bom tanto no objeto como no self” (Klein, 1991, p. 350).

Francisco relatava que não queria mais ser um monstro, queria ser uma pessoa melhor. Foi trabalhando as lembranças do passado que foi se libertando de repetir as agressividades, e com isso, pensando novas formas de viver a vida.

Até o momento final da escrita deste trabalho, Francisco ainda não havia entrado em contato para agendar uma sessão conforme mencionado em mensagem via WhatsApp.

Ao longo do processo de psicoterapia fui desempenhando o papel de uma mãe suficientemente boa, ficando ao alcance do Francisco para despertar dos pesadelos do passado e, assim, a realidade externa pudesse ser menos dolorosa.

Francisco me fez lembrar a música do Jota Quest (Flausino et. al., 2000):

Vivemos esperando

Dias melhores

Dias de paz, dias a mais

O dia em que seremos melhores…

Francisco hoje busca por paz, por dia melhores, dias de menos dor e mais amor.